As 7 Marias da Sé e mais um enigma da Vitória
No século XVIII, a tradição dizia que ela foi dada pelo Rei Manoel
Este texto continua as investigações de Qual é a igreja mais antiga do Brasil? e Duas palavrinhas sobre a devoção à Nossa Senhora da Graça.
O Prof. Luiz Mott me deu uma bela pista para investigar as devoções marianas dos textos anteriores: o Santuário Mariano, do Frei Agostinho de Santa Maria (1642 - 1728). Publicada de 1707 a 1723, a volumosa obra pretende conter uma descrição das devoções marianas do mundo português. A obra completa em 10 volumes está digitalizada. (Nessa época, havia dois tipos de s minúsculo: o do final das palavras, igual ao de hoje, e o outro, de início e meio de palavras, que parece um f. Imita o grego, que tem dois sigmas minúsculos: σ e, no final, ς.) Pelo que olhei, o volume 8 contém as devoções africanas e orientais; o 9 e o 10, as devoções brasileiras. Notei que as baianas estão no 9 e as fluminenses estão no 10, mas há coisas de Pernambuco, do Pará, do Ceará e de São Paulo nos volumes brasileiros. A ordem é mais ou menos cronológica, e o frei registra tanto a história que ele acredita ser verdadeira (sem dar as fontes!), quanto a versão transmitida pela oralidade. Assim, nessa quase cronologia, ele começa o Brasil por Salvador, que é a cidade, a urbs, mais antiga do Brasil. (São Vicente foi fundada como vila, não como cidade.)
Como já mencionei, Salvador foi fundada por Thomé de Souza em 1549 numa área muito menor do que a Salvador atual, e encontrou outras povoações mais antigas cujas áreas hoje estão em Salvador. A Salvador de Thomé de Souza tinha uma única rua — a atual Rua Chile, fundada (se não me falha a memória) como Rua Direita do Palácio — e consistia numa pequena área “murada” por estacas de madeira, com uma sede do governo feita de palha. Ficava ali onde está hoje o topo do Elevador Lacerda, e a sede do governo de palha foi substituída no XVII pelo atual prédio da Câmara Municipal (que tem uma estátua de Thomé de Souza defronte). Aos poucos ela foi se alargando; mas no começo o Colégio dos Jesuítas (cuja edificação fica no Terreiro de Jesus e se transformou na Faculdade de Medicina da UFBA) surgiu externo às paliçadas da cidade. A Sé, primeira catedral do Brasil, ficava onde hoje estão a Cruz Caída e as ruínas expostas. Se a memória não falha, foi demolida em 1933 (fácil de lembrar porque é o ano da ascensão de Hitler). Quem quiser conhecer a história dessa Salvador minúscula pode ir ao Palácio Arquiepiscopal, no Pelourinho, onde há não muitos anos começou a funcionar um museu com esse tema, e que expõe inclusive a pedra fundamental da urbe soteropolitana.
Demoliram a primeira catedral do Brasil
No museu do Palácio Arquiepiscopal, encontram-se não só coisas da Sé, como grandes reproduções de jornais da época da demolição. Neles, cobrava-se ou comemorava-se o feito, porque a Sé era considerada anti-higiênica. Essa é a única ocasião em que me deparei com uma clara campanha contra as igrejas que se servia de um pretexto estapafúrdio para derrubá-las. Aqui em Cachoeira, na loja do moldureiro Bui, que funciona pela manhã perto da Santa Casa de Misericórdia, há à venda a foto de uma igreja barroca que foi demolida com o pretexto de construir-se uma maternidade no local, sendo que nenhuma maternidade foi entregue (ou ao menos esta é a versão oral que me foi passada — mas o fato é que a foto em preto e branco existe, e a igreja não). Em Cachoeira, na Ordem Terceira do Carmo, pode-se ver também a principal razão pela qual os higienistas brigavam contra as igrejas: estão conservadas as paredes mortuárias com suas tampas de madeira pintadas. Os mortos eram enrolados em tecido, postos numa cavidade da parede, e a parede tinha tampas de madeira pintadas com motivos fúnebres. As pessoas estavam acostumadas ao cheiro dos mortos misturado ao incenso. Ou ao menos é o que diz o guia; mas que as câmaras e as tampas estão lá, estão.
Com certeza havia motivos nobilíssimos para os higienistas quererem reformar fisicamente as igrejas. Mas se em 1933, muito depois da criação de cemitérios, a imprensa queria derrubar a Sé com argumentos higienistas, tratava-se de arrumar pretextos para derrubá-las.
Catedral cheia de Marias
Em sua ordem mais ou menos cronológica, o Frei Agostinho de Santa Maria começa pela (1) Nossa Senhora da Graça, (2) Nossa Senhora do Desterro (trazida por Mem de Sá e que foi parar no Convento de Santa Clara), (3) Nossa Senhora d’Ajuda (da primeira igreja construída dentro da Salvador murada) e, do número 4 ao 10 são imagens da Catedral da Sé. Segundo o frade, a catedral era imensa (por isso levou tanto tempo sendo construída) e tinha muitas capelas e altares. De tantas capelas, sete eram dedicadas a Maria. Eram veneradas lá: Nossa Senhora das Maravilhas (a mais importante), Nossa Senhora da Piedade ou da Soledade, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora da Fé, Nossa Senhora do Parto e Nossa Senhora do Rosário.
A imagem das Maravilhas está no Museu de Arte Sacra da UFBA (cuja edificação, do XVII, foi o Convento de Santa Teresa) e é famosa por ter atendido às preces de Vieira, que rezava para deixar de ser burro, teve o tal do “estalo” e ficou inteligente. Eu nunca entendi por que ele tinha essa devoção específica, nem de onde ela vinha.
Infelizmente, a origem do título continua misteriosa, pois o autor apenas faz comentários ao quão maravilhosa é Maria, que fez com que o filho de Deus, já sendo grande em seu ventre, ficasse ainda maior. No mais, a imagem é considerada milagrosa porque, no século XVII, pouco depois de a catedral ficar pronta, o menino Jesus sumiu. Furtado por uma mão sacrílega nunca identificada, foi parar nas mãos de uma negra; que, à cata de lenha, não reparou no que era e jogou na fogueira para se aquecer. O menino saltou da fogueira, e a negra, reconhecendo o milagre, levou-o à catedral.
A outra dessas imagens que está no Museu de Arte Sacra é a de Guadalupe. Achei interessante que, segundo o museu, o estilo coloca a sua origem na Espanha do s. XVI. A roupinha de prata, porém, é do XVII.
No relato do Frei Agostinho de Santa Maria, há uma coisa curiosa: ele atribui a devoção de Guadalupe a uma manifestação em Villuercas de Toledo ocorrida por volta de 1444. Ao que parece, é senso comum que a descoberta da imagem na Serra de Villuercas é do século XIII. Erro de uns 200 anos. Vale apontar que essa imagem tem Jesus no braço, como a primeira Guadalupe, a espanhola. Já a mexicana, hoje muito mais famosa, está grávida.
O frade não sabe como a imagem foi parar lá. Diz que foi a primeira a ganhar a roupinha de prata, e que todas as imagens receberam depois. Ele acha que foi trazida por espanhóis, mas quando escrevia, no XVIII, havia se tornado uma devoção de irmandades de pardos. Por isso, havia, segundo ele, uma porção de capelas e igrejas em Salvador dedicadas à Nossa Senhora de Guadalupe. O frade também achava que a das Maravilhas era a imagem mais velha; mas, a crermos no Museu de Arte Sacra, a de Guadalupe é mais velha.
A Vitória, dada pelo Rei Manoel?
Como vimos, o frei começa pela Graça. Mas ele erra muito na cronologia! Ele supõe que Caramuru tenha naufragado numa nau portuguesa que ia para São Paulo, e coloca-o como posterior a Martim Afonso e ao Rusticão (o donatário comido por índios). Quanto ao naufrágio castelhano, ele bota lá por 1550 (um ano depois da fundação de Salvador!), quando na verdade o naufrágio é de 1535. Ele sabe que Catarina foi batizada na França, mas bota o ano lá pra frente. De maneira ainda mais curiosa, ele coloca a Vitória como a mais antiga paróquia da Bahia. A Vitória seria a paróquia mais antiga (de fato, segundo o site, foi fundada em 1561, antes da Batalha de Lepanto), e a Igreja da Graça a mais antiga. Não faz sentido… Ele também não diz uma palavra quanto à escolha do nome, já que se tratava de uma evidente imagem da Conceição.
No entanto, ele é informativo quanto à imagem em si. Olhemos de novo para ela; eu achava que era uma espadinha que ela tinha em mão:
Segundo o frei, trata-se de “uma palma de prata sobredourada, adornada de esmeraldas, ou pedras verdes, e vermelhas. […] A palma se lhe deveria oferecer, em sinal da vitória que lhe concedera contra os índios.” Sim, pois, como eu suspeitava, a igreja recebeu esse nome por causa de uma vitória militar: “uma grande vitória, que os portugueses alcançaram com o favor de Nossa Senhora contra os índios; porque estimulados esses do mau trato de alguns dos nossos, unidos todos em um copiosíssimo exército, intentaram lançar de todo fora de suas terras aos nossos portugueses; e como estes os venceram, e destruíram com o favor de Nossa Senhora, pela grande vitória, que ela lhe deu contra todo aquele gentilismo, lhe impuseram então o título da Vitória.”
Para o frei, a paróquia ficava na Vila Velha (atual Porto da Barra) e foi criada pelo Rusticão. Tal como a atualidade, ele considera que o Rusticão era estúpido com os índios, ao passo que Caramuru sabia lidar muito bem com eles. Uma coisa diferente, porém, é que ele costuma dar o destaque a Caramuru e seu genro “Paulo Dias”, isto é, Paulo Dias Adorno, o único dos três irmãos genoveses que é “Dias”. (Terá adotado esse sobrenome ao fugir de São Paulo como assassino?) Para além das questões cronológicas, desagrada-me a ideia de que a Vitória tenha sido deslocada, pois, como observei, a sua localização é de grande importância militar; é o primeiro ponto alto defronte do mar na entrada da Baía de Todos os Santos. A elevada Salvador de Thomé de Souza teve, notoriamente, seu local escolhido segundo critérios militares. E não existia a Cidade Baixa (cabia ali só uma ermida da Conceição da Praia espremidinha); era um terreno muito similar ao da Vitória. Você sai de lá, caminha menos de uma hora rente à escarpa (com vista hoje tapada pelos prédios) e chega à antiga Salvador murada.
O frei registra a maneira como os soteropolitanos contavam a história da igreja àquela época, isto é, no primeiro quartel do século XVIII: “Dizem os moradores da Bahia, que é tradição constante, que esta sagrada imagem a mandara El Rey Dom Manoel com um sino, que ainda ao presente se conserva na mesma igreja. Bem podia ser que esse piedoso rei mandasse a sagrada imagem, porque outras muitas deu para as Conquistas, mas eu mais me acomodo em que foi El Rey Dom João III foi o que a mandou”. Sem esse registro, eu jamais imaginaria que a imagem é do reinado de D. Manoel, que se encerrou em 1521! Paraguaçu se batizou na França em 1528. Inferi que a Igreja da Vitória deveria ser posterior a isso; mas não é impossível que ela tenha ficado sem batismo por falta de padre, em vez de falta de igreja ou de oratório.
De resto, o frei menciona que a Igreja da Vitória tinha também uma Nossa Senhora do Rosário numa “capela colateral”, e que “é servida esta Senhora por uma devota irmandade de pretinhos, que com fervorosa devoção lhe assistem e a festejam com muita grandeza, cuja devoção será muito aceita e muito clara nos olhos de Deus e da Senhora, que alcançará para os seus pretinhos que a servem muitos grandes favores, principalmente os da sua graça, com a qual os fará muito claros no Céu.” Diante do assunto do primeiro desses três textos, não é nada surpreendente a capela do Rosário na Vitória, já que Nossa Senhora do Rosário é Nossa Senhora da Vitória depois da Batalha de Lepanto.
Ponderação final
Termino esta reflexão pensando que as imagens sacras nas igrejas barrocas brasileiras são aquilo que os anglófonos chamam de hidden in plain sight, escondido na vista de todos. Escondido de quem? Não dos devotos, por certo — mas sim dos acadêmicos, que raramente são devotos; e, quando são, é possível que separem tão bem a devoção da vida acadêmica que se contagiem com a cegueira. Fui vizinha da Igreja da Vitória. Entrava lá com olhos de historiadora e ia ver lápides, sem pensar na imagem. Conheço a das Maravilhas e pude identificar a de Guadalupe pela foto porque ambas estão expostas em museu, com plaquinhas, dizendo aos acadêmicos: “Olhem para mim!” Se a Sé estivesse de pé, possivelmente elas estariam diante dos olhos dos devotos, que iriam lá fazer preces. Como a Igreja é uma instituição bastante intelectual, é uma pena que o clero não faça uma ponte entre a academia e o seu patrimônio. Fiquei com muita inveja da cidade de Nettuno, onde, por meio de pesquisas acadêmicas, os devotos provaram a veracidade da lenda 450 anos depois. Para não dizer que não temos nenhuma intercessão entre os dois âmbitos, o vandalismo contra Aparecida levou-a a ser estudada pela restauradora, então uma ateia do MASP, que analisou o material, confirmou a lenda (viu que a imagem passou muito tempo submersa) e acabou se convertendo depois.
Não haverá imagens dadas pelo Rei Manoel conhecidas, com as quais se possa comparar a de Salvador? Há muito a se descobrir ainda na história do Brasil.