A pergunta do título permite mais de um tipo de resposta. Se estivermos falando de uma edificação, segundo o IPHAN, a igreja mais antiga do Brasil fica em Igarassu, Pernambuco, e foi construída em 1535, dedicada aos Santos Cosme e Damião.
No entanto, também se entende que igrejas e outras edificações institucionais têm uma identidade independente de uma edificação específica. Na história do Brasil isso é importante porque não raro construções de palha e taipa são substituídas por construções sólidas e duradouras. É o caso, por exemplo, da Catedral da Sé e da Casa de Câmara e Cadeia em Salvador. A Catedral da Sé (primeira catedral do Brasil) não existe mais, porque no começo do século XX derrubaram uma rica edificação do século XVII para passar o bonde. Se existisse ainda, dir-se-ia que sua origem é do século XVI, quando foi construída com palha. Já a estátua de Thomé de Souza encontra-se, hoje, defronte do local onde ele fundou a primeira sede do governo brasileiro, que hoje é a Câmara de Vereadores e tem sua construção atual do século XVII.
Nesse sentido institucional, as igrejas mais antigas da atual cidade do Salvador são a Igreja da Vitória, de datação incerta, e a Igreja da Graça, feita de barro em 1535. Na História da Fundação da Cidade do Salvador, Theodoro Sampaio afirma que ambas são do “período lendário”, compreendido este como a fase anterior às Capitanias Hereditárias.
Um pouco de História do Brasil
Como se sabe, Cabral chegou aqui em 1500, e esse é o marco oficial do Descobrimento. No entanto, o Brasil ficou abandonado pela Coroa por uns 30 anos. Em 1530, Martim Afonso de Souza faz uma expedição a mando do rei e funda, no atual estado de São Paulo, a mais antiga vila do Brasil, São Vicente, de 1532. Em 1534, começa a valer formalmente o sistema de Capitanias Hereditárias, uma “PPP” na qual os capitães compram da Coroa o direito hereditário de administrar as tais capitanias. A única capitania que deu certo mesmo foi a de Duarte Coelho, em Pernambuco. Na Bahia foi uma confusão dos diabos: comeram o donatário. Em 1549, Thomé de Souza chega para fundar Salvador e fazer da Bahia uma Capitania Real. Por isso, o título de “igreja mais antiga de Salvador” pode ser ambíguo, já que os bairros da Barra, da Vitória e da Graça não pertenciam a Salvador. A primeira igreja fundada dentro dos limites da Salvador histórica de Thomé de Souza é a Igreja da Ajuda, que foi derrubada no começo do século XX, mas ainda existe porque a reconstruíram num local próximo, levando coisas da original. Assim, as igrejas mais antigas da atual Salvador são mais antigas do que a própria Salvador, porque a cidade é de 1549 e a Igreja da Graça é da década anterior. A Salvador histórica era uma área murada onde hoje está a parte de cima do Elevador Lacerda, com a Câmara Municipal.
E que gente era essa, que construía igreja antes de haver capitania ou cidade? Que havia por aqui, além de índios brabos? Havia uma montanha de piratas franceses que adentraram até mesmo o Rio Paraguaçu. Eles vinham atrás de pau-brasil para abastecer os fabricos têxteis da Bretanha (não confundir com a Grã-Bretanha). Os franceses tinham boas relações com os tupinambás, que os chamavam de mair e diferenciavam dos portugueses, peró.
Só em 1525, segundo Theodoro Sampaio, a Coroa esboça uma reação ao oba-oba dos bretões e envia certo Christovam Jacques, ou Cristóvao Jaques, que de 1526 ao início de 1527 fica, com uma esquadra guarda-costas, percorrendo a costa brasileira e escorraçando franceses.
Caramuru e Paraguaçu
Pois bem: ao que parece, desde a década de 1510 encontrava-se benquisto entre os tupinambás o português (ou galego) Diogo Álvares, conhecido como Caramuru (Moreia em tupi). A história de que ele disparou uma arma e conquistou admiração dos índios não é plausível, pois a pólvora iria para as cucuias num naufrágio. O fato é que ele conseguiu não ser escravizado nem comido, e ainda por cima casou-se com uma princesa tupinambá, Paraguaçu.
Casou-se inclusive na Igreja. Em 1527 (mesmo ano em que Cristóvão Jaques afugentava franceses), Caramuru e Paraguaçu pegam uma carona na Bahia até a França com o navegador Jacques Cartier. Em Saint-Malo, Bretanha, a índia Paraguaçu foi batizada como Katherine du Brézil, ou Catarina do Brasil, em julho de 1528. Nos mapas franceses, a Ponta do Padrão (onde está o Farol da Barra) era conhecida como Ponta do Caramuru.
Em algum momento, voltaram à Bahia — pois Caramuru estava na área quando o Rusticão chegou e fundou sua fracassada Vila onde hoje é o Porto da Barra. Ele vivia brigando com os índios e não se dava com Caramuru. Terminou devorado por índios da ilha de Itaparica em 1547, após um naufrágio do qual Caramuru se safou, mais uma vez, sem ser comido. Quando Thomé de Souza chega para fundar Salvador, ele conta com a ajuda de Caramuru e dos índios. Bem antes disso, eles chegaram a se encontrar também com Martim Afonso de Sousa, que trouxe consigo três irmãos genoveses (José, Francisco e Paulo Dias Adorno), mas levou-os consigo para São Paulo. Paulo voltaria para a Bahia em 1533, depois de cometer um homicídio.
Uma coisa interessante: a Ponta do Caramuru e a Vila do Pereira ficavam numa parte baixa e naturalmente desguarnecida. É a entrada da Baía de Todos os Santos, que na verdade é um pequeno golfo com dezenas de ilhas dentro. Já Salvador e as igrejas mais antigas ficam na parte alta e interna ao golfo. Da Igreja da Vitória e do alto do Elevador Lacerda vê-se a Ilha de Itaparica, dentro da baía/golfo. São dois locais naturalmente defensivos. A Igreja da Vitória, em particular, fica no começo da escarpada, para quem vem do Farol da Barra. Você sai do plano, sobe uma grande ladeira e no topo está a Vitória. Se seguir caminhando reto no mesmo nível, em meia hora chega ao Elevador Lacerda. A Graça, porém, é mais recuada e não tem vista clara para o mar.
Vitória X Graça
Segundo consta numa lápide da Igreja da Vitória, lá está enterrado o primeiro homem a casar-se no Brasil, em 1534, naquela mesma igreja: um certo Afonso Rodrigues natural de Óbidos, casado com Madalena, filha de Caramuru. Na mesma igreja e ano, casou-se, com outra filha de Caramuru, o genovês Paulo Dias Adorno. Outra coisa favorável à antiguidade da Igreja da Vitória, segundo Theodoro Sampaio, é uma inscrição de 1809 que diz que a igreja havia sido fundada em 1521, ano do descobrimento, pelos portugueses, da Baía de Todos os Santos. No entanto, isso se devia ao erro de um historiador, pois os portugueses já conheciam a Baía desde 1501. Além disso, podemos ponderar que Paraguaçu não precisaria ir à Bretanha para se batizar caso houvesse uma igreja na Bahia.
Rejeitar a inscrição da lápide não é tão fácil. Theodoro Sampaio usa os relatos de náufragos castelhanos e as crônicas de um jesuíta do século XVII para dizer que, quando houve o naufrágio em 1535, não existia oratório nem igreja na Bahia. O problema é que o próprio Theodoro Sampaio, usando os relatos dos náufragos castelhanos, apresenta Caramuru como um cristão que estava em dia com a sua fé e que ficava na área com o fito de dar assistência aos cristãos que se perdessem ali, tendo ajudado franceses, portugueses e castelhanos. De fato, a aldeia mameluca e cristã de Caramuru era composta de índios e náufragos. Havia lá, segundo cronistas da época, moças tão bonitas quanto as da Rua Nova de Lisboa.
Vamos ao dito naufrágio castelhano. Em 1535, Paraguaçu sonhou com uma mulher de uma nau castelhana naufragada, pedindo ajuda. Ela manda o marido ir atrás e Caramuru de fato encontra uma nau castelhana naufragada na ilha de Boipeba. Nela, os índios acham uma imagem de Nossa Senhora segurando o Menino Jesus e pisando em anjinhos. Paraguaçu a reconhece e manda construir uma igreja para a imagem. Pronto: essa é a história da Igreja da Graça, que existe até hoje. Infelizmente a imagem foi descaracterizada (“modernizada”) no início do século XX. Ô época danada!
No século XIX, então, era consensual que a Igreja da Vitória era mais velha que a Igreja da Graça, tanto que ela aparece nesse quadro romântico intitulado O Sonho de Catarina Paraguaçu. A partir do sonho, construir-se-ia a segunda igreja de Salvador, a Igreja da Graça.
Impacto mariano da Batalha de Lepanto (1571)
No frigir dos ovos, mesmo que se seja cético e aceite que a Igreja da Graça é a mais velha das duas, tem-se que aceitar o fato de que a origem da Igreja da Vitória resta inexplicada. Theodoro Sampaio diz que o casamento de 1534 pode ter ocorrido num navio. Seja como for, uma hora — antes de 1549 — a Igreja da Vitória passou a existir e, até onde eu saiba, ninguém explica isso. Quanto aos relatos dos que focaram na aldeia mameluca da Ponta do Caramuru, de lá não se veria uma igrejinha de taipa no topo de um alto morro cheio de Mata Atlântica.
A Igreja da Graça e a Igreja da Vitória ficam (sem mata) a uns 5 minutos de caminhada uma da outra. É perto e não deixa de ser redundante — caso não haja uma distinção importante entre uma e outra.
Não parece factível que Paraguaçu precisasse ir à Bretanha para se batizar, caso houvesse igreja já em 1528. Assim, a Igreja há de ter sido feita entre 1529 e 1534, quando houve o primeiro casamento. Nesse ínterim, a visita relevante conhecida é a de Martim Afonso de Sousa. Terá ele levado religiosos para fundar uma igreja? Sendo esse o caso, é muito estranho que não haja registros do feito. Por outro lado, se forem bretões…
Como já mencionado, a Igreja da Vitória fica num lugar vantajoso de uma perspectiva militar. É o ponto alto mais próximo à entrada da baía/golfo de Todos os Santos. O próprio nome “Nossa Senhora da Vitória” é, também ele, militar, e a imagem traz uma espadinha na mão:
Muito depois desses eventos baianos, em 1571, houve a Batalha de Lepanto, no Golfo de Patras, que foi muito importante para a cristandade impedir que a Europa voltasse a ser conquistada pelos muçulmanos (no caso, otomanos). Diante da grande desvantagem cristã, o Papa São Pio V pediu que toda a cristandade da Europa rezasse o rosário. Contra todas as chances, a cristandade teve uma vitória acachapante e os otomanos cessaram a sua vigorosa expansão pelo Mediterrâneo. Em virtude disso, em 1572 São Pio V instituiu que o dia 7 de Outubro seria o dia festivo de Nossa Senhora da Vitória, em comemoração à vitória na Batalha de Lepanto. Mas ele não viveu para ver a festa, pois morreu em maio. Já em 1573, o sucessor dele, Gregório XIII, mudou o nome da festa para Nossa Senhora do Rosário. Assim, criou-se (se não existia antes…) uma relação de identidade entre Nossa Senhora da Vitória e Nossa Senhora do Rosário. Nossa Senhora da Vitória é Nossa Senhora do Rosário. A devoção é bem anterior a Lepanto e tinha a ver com a cruzada contra os cátaros, na França.
A Igreja da Vitória em Salvador foi fundada antes da Batalha de Lepanto. O povoado de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira foi fundado depois da Batalha de Lepanto, por Paulo Dias Adorno — aquele genovês que se casou na Igreja da Vitória. No final do século XVI, Paulo Dias Adorno começa a construir, tal como existe hoje, a Capela de Nossa Senhora do Rosário (que hoje é devotada à Nossa Senhora da Ajuda, porque Cachoeira ganhou uma Matriz devotada à padroeira da cidade). A capela fica num pequeno monte sobre o Rio Paraguaçu. Na outra margem, estão índios brabos…
Especulações
Vamos aos chutes. Ainda no século XVII, a França construía uma basílica para a Nossa Senhora das Vitórias (no plural). Só no século seguinte, em 1716, o Papa Clemente XI decreta que a festa de Nossa Senhora do Rosário era universal. Em 1671, seu antecessor havia decretado que a festa seria comemorada em toda a Espanha. Assim, pode-se dizer que a substituição da Vitória pelo Rosário pegou mais rápido num lugar do que noutros. Na Bahia, pegou muito rápido — porque os irmãos Adorno eram genoveses e Gênova lutou a Batalha de Lepanto. Basicamente, em Lepanto lutaram os italianos (divididos em mil corpos políticos), os malteses e os saboianos… Daí a mudança não ter pego com velocidade por toda a Europa.
Será que um bretão fundou uma Nossa Senhora da Vitória com o auxílio de Caramuru? Ou será que os genoveses andavam por aqui antes de Martim Afonso trazer os irmãos Adorno, e Caramuru costurou alguma acordo antes dessa vinda? Os irmãos Adorno não eram raia miúda. Eles eram de uma família de doges envolvida na briga dos guelfos e gibelinos e no plantio de cana-de-açúcar.
É bem sabido que Paulo Adorno teve de enfrentar índios brabos para estabelecer o povoado da Cachoeira. Assim, faz todo o sentido que a cidade tenha uma padroeira militar. Só podemos imaginar Adorno rezando o rosário antes de enfrentar os canibais. Por analogia, não é de se esperar que tenham ocorrido batalhas em Salvador, já que há uma Nossa Senhora da Vitória? Pela posição da igreja, é possível inclusive que tenha havido batalhas navais, já que por muito tempo Itaparica foi povoada por índios brabos. Que, não obstante, se abstiveram de comer Caramuru… A história de Caramuru é muito misteriosa. E sabemos que esse náufrago estava na Bahia porque queria, pois foi à Europa quando quis e voltou.
É possível, então, que a Igreja da Vitória seja a mais antiga do Brasil. Para achar uma mais antiga, só se algum aventureiro anterior às capitanias (como João Ramalho em São Paulo) tiver fundado alguma. No entanto, o casal Caramuru-Paraguaçu se destaca em toda a história nacional por ter se casado antes mesmo que houvesse igrejas em solo nacional.
Olhando sem compromisso o verbete “Irmãos Adorno” (muito baseado num livro de Edith Porchat), vejo que em 1562 José Adorno deu à Santa Casa de Misericórdia de Santos uma Capela de Nossa Senhora da Graça — graciosamente demolida no início do século XX, para variar. Não é curioso que seja o mesmo nome que a santa vista por Paraguaçu recebeu? Haverá um paralelismo entre paz e guerra nas devoções à Vitória/Rosário e à Graça? Será que compreender as devoções genovesas ajuda a compreender a história do Brasil ou, pelo menos, da Bahia e de São Paulo?
Grato, cara escritora.
Grato.