Duas palavrinhas sobre a devoção à Nossa Senhora da Graça
A rocambolesca história da imagem inglesa que fugiu para o Lácio
Como estou sem pendências, não me contive e fui dar uma olhada no histórico da devoção à Nossa Senhora da Graça, crente que acharia algo relativo a Gênova. Não achei. Para minha surpresa, a devoção é inglesa!
Muita gente tem preconceito contra a Wikipédia; assim, explico que o que faço é usar como consulta de bibliografia, e que em geral tenho preferência pela versão em inglês, cuja qualidade costuma ser melhor (exceto em assuntos que são de interesse maior para uma nação de outra língua). Bons verbetes da Wikipédia indicam fontes. Por isso gosto de usar quando quero pesquisar algo do zero… Qual não foi, então, a minha surpresa ao ver que Our Lady of Grace só tem verbetes em dois idiomas: inglês e português? E esse é mais um caso no qual o verbete em inglês está bem melhor.
A história é rocambolesca: na Inglaterra medieval, mais precisamente na localidade costeira de Ipswich, havia o oratório, ou capela, ou santuário (“shrine” é um termo ambíguo) de Nossa Senhora da Graça, ou Nossa Senhora de Ipswich. Neste livro aqui, lemos que em 1297 Eduardo I escolheu o local para casar a sua filha Isabel com o Conde de Holanda. Ipswich atraía muitos romeiros que iam venerar sua imagem sagrada de Nossa Senhora da Graça. Foram lá prestar homenagens Catarina de Aragão (que levou o marido Henrique VIII à missa lá em 1522) e Thomas Morus, que foi canonizado como mártir. Este chegou a relatar um milagre feito pela imagem de Ipswitch em seu livro The Supplication of Souls. Segundo a Wikipédia (isto eu não chequei, mas a referência está aí), o milagre consistiu em curar a filha de um amigo dele, que tinha convulsões e blasfemava.
Na década de 1530, a Reforma chega à Inglaterra com sua fúria iconoclasta, que se voltava sobretudo para as imagens marianas. Em 1534, Henrique VIII rompe com o Papa. Em 1538, estava prevista a queima da imagem de Ipswich em Londres. A partir daí, a história fica confusa. Os céticos mais radicais dizem que a imagem foi queimada, mesmo que não haja testemunhos disso. A lenda diz que a imagem foi salva por marinheiros e transportada até Nettuno, cidade costeira do Lácio onde está até hoje. No século XX, a imagem foi periciada por historiador da arte, que fixou seu estilo na Inglaterra do século XIII; e, no século XXI, a Universidade de Salento fez um exame de carbono 14 que estimou que ela poderia ter sido talhada entre do século XIII ao XV). Assim, é razoável concluir que a lenda é substancialmente verídica. Os céticos mais comedidos creem que o ministro Thomas Cromwell preferiu vender a imagem a queimá-la. Seja como for, consta que a imagem chegou a Nettuno somente em 1550. O que terá acontecido com ela em 12 anos? Mistério.
Na floresta de links da Wikipédia em inglês, achei esta série de vídeos em italiano de 2010, quando foi feita uma cópia da estátua para Bento XVI benzer. Ali o padre responsável diz que a imagem deveria ir para Nápoles, mas uma tempestade fez os marinheiros crerem que a Providência queria que a estátua permanecesse em Nettuno. Ele diz também que as imagens da Inglaterra saíam para Londres de barco, de modo que os marinheiros ingleses davam uma volta para tentar vendê-las em países católicos. Mencionou ainda que há uma porção de documentos lá em Nettuno relativos à história da imagem. De resto, o vídeo mostra a imagem sem paramentos, e pode-se ver que aos seus pés há a inscrição AVE GRATIA PLENA (Ave, cheia de graça). É evidente que vem daí o nome da imagem.
Não obstante, em italiano o nome dela foi para o plural: Madonna delle Grazie (das Graças). E na maioria das línguas, talvez por uma questão de eufonia, o nome é plural. Exceções são o inglês, o português e um ícone francês do século XV.
Especulações
Eu caí neste “rabbit hole” porque Lorenzo Carrasco tem a convicção de que havia uma conspiração supra-dinástica (i. e., acima das disputas monárquicas) concentrada na Nossa Senhora de Guadalupe de Estremadura (Espanha), cuja intenção era levar a fé católica ao mundo. A grande coroação desse plano seria a aparição de Guadalupe no México, que converteu os astecas e outros índios norte-americanos ao mesmo tempo em que a Igreja perdia montanhas de fiéis para a Reforma. Além disso, em Guadalupe se tramava a reconversão do mundo anglófono.
Lorenzo viu que havia uma Guadalupe na Bahia (esta do Museu de Arte Sacra); mas, se formos procurar pelas Marias da Bahia, o nome de Guadalupe não tem destaque algum. Isso quer dizer que devemos olhar para a iconografia à procura da identidade? É difícil fazê-lo sem cair em arbitrariedades. De todo modo, se mariologia está longe de ser um assunto que domino, a história colonial brasileira é algo de que sempre gostei muito, e o pretexto para voltar à história de Salvador foi muito bem-vindo. Eu estava entretida com as histórias da Vitória e da Graça, da minha Salvador natal, quando uma pessoa fez com que eu trombasse com a história da Batalha de Lepanto, o que me levou a pensar em Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, onde vivo. E descobri, enfim, que era possível dois títulos de Maria serem um, mesmo com nomes diferentes.
Voltemos ao Brasil. Em Santos, no ano de 1562, o explorador genovês José Adorno cria uma capela de Nossa Senhora da Graça — uma devoção, até onde eu saiba, não muito comum para um genovês. Em Salvador, no ano de 1535 (em plena Reforma inglesa), a sogra de outro explorador genovês, Paulo Adorno, cria uma igreja para Nossa Senhora da Graça. A imagem da nau castelhana encontrada pelos índios é uma típica representação da Nossa Senhora Conceição, pois pisa na cabeça de anjinhos. Conceição é uma devoção muito comum em todo mundo ibérico. Não obstante, a imagem recebe o nome da Graça. Essa com certeza é uma opção relevante.
Fico por aqui. Registro que o Prof. Luiz Mott, grande estudioso do Brasil colonial, ponderou que é possível, sim, Caramuru ter impressionado os índios com a pólvora, pois ela era transportada em barricas hermeticamente fechadas.
Reclames
Lorenzo Carrasco é editor e, mais em específico, meu editor também. Interessados podem procurar o livro da editora dele sobre a Virgem de Guadalupe mexicana, já publicado (A face de Nossa Senhora no manto de Guadalupe, de Paul Badde), e aviso que o meu, sobre wokismo e anarcocapitalismo, está em pré-venda, devendo sair em maio. Eu ia pôr os links da editora Capax Dei, mas vejo que o site está fora do ar agora (https://capaxdei.com.br/). De todo modo, é preferível tratar com o próprio Lorenzo para negociar descontos, em caso de compra de mais de um livro: 21 98859-9064.