Coisas boas e afrochatos em Cachoeira, BA
Palestras, estreia de filme e lançamento de livro
Mês passado foi comemorado o aniversário de 188 anos da elevação de Cachoeira de vila a cidade. Em virtude disso, houve eventos culturais e “culturais”, tais como palestras de História, feira de artesanato e shows que incluíam cantores que exaltam o estilo de vida de traficantes putanheiros (coisa que infelizmente este país normalizou e deveria ser proibida). Compareci às palestras. Além disso, por coincidência, houve a estreia do filme Passos Retumbantes, de Allan Maia, e o lançamento do Dicionário Histórico-Biográfico dos Moradores da Heroica Cachoeira (Século XIX), de Igor Roberto de Almeida Moreira.
As palestras
As palestras foram dadas pela professora Camila Santiago, da UFRB de Cachoeira, e seu orientando Igor Roberto, que cursa o doutorado na UFBA. Ela, uma concursada com sotaque mineiro; ele, nativo. O auditório estava cheio de alunos escolares e a professora fez uma palestra bem didática, compatível com o público. É raro um acadêmico saber fazer isso. Já Igor Roberto fez uma palestra muito detalhada em estilo bem acadêmico. Com ambos, aprendi sobre a fundação de Cachoeira como freguesia de Santiago do Iguape (hoje distrito de Cachoeira) a partir da atual Capela d’Ajuda (que é do final do século XVI ou começo do XVII), e também me inteirei da lenta e opulenta construção da Igreja Matriz, ao longo do século XVIII, que custou muito mais do que o planejado, contou com contribuições dos moradores (e não só da Coroa) e ficou muito luxuosa. Aliás, se você não conhece, vá ver a imensa azulejaria e o teto com pinturas ilusionistas da Matriz de Cachoeira. No século XVIII a antiga Capela do Rosário passa a ser Capela d’Ajuda, e a Matriz da então Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira é dedicada, claro à Nossa Senhora do Rosário.
Foi exibida uma foto antiga da Capela d’Ajuda em que ela tinha uma lira na fachada. É uma lira que consta em vários imóveis antigos, e eu perguntei do que se tratava. Soube então que era o símbolo de uma corporação de músicos liderada por um padre no século XVIII. O historiador aproveitou para fazer propaganda do lançamento do livro dele no final do mês. Achei muito interessante esse precedente, pois a cultura de Cachoeira é marcada pelas filarmônicas do século XIX. O auge das filarmônicas no Brasil foi o século XIX. Assim, Cachoeira não se destaca só por manter as filarmônicas bem depois da moda (elas estão firmes e fortes no XXI), mas por ter se antecipado à moda.
Na hora das perguntas, apareceram assombrações que atendem pelo nome de Zeitgeist, ou “espírito/fantasma do tempo” em alemão.
Como (não) parecer inteligente numa palestra
A coisa mais chata que pode ocorrer a um palestrante competente é falar para um auditório indiferente, que não está entendendo nada, nem quer entender. Assim, se você estiver interessado e tiver uma pergunta, levante a mão e faça-a; se não puder, deixe para o final. No entanto, o fato é que uma parte das pessoas que entra de livre e espontânea vontade numa palestra apenas quer parecer inteligente e não está preocupada em entender nada. A hora de brilhar é a das perguntas. E hoje a TV e as celebridades já ensinaram que é chique no úrtimo problematizar as questões de gênero e raça. Se as apresentações foram embasadas em documentos da burocracia eclesiástica, essa é uma ótima oportunidade para dois burros velhos problematizarem a falta de menção às religiões dos outros povos que já estavam na terra. E isso porque a historiadora explicou tintim por tintim ao auditório cheio de adolescentes como funcionavam o padroado e a pesquisa histórica em questão. Uma idosa branca fez essa questão e contou ao auditório inteiro que não mora aqui, mas comprou uma casa porque gosta muito; em seguida, um afrochato local fez a mesma questão, mesmo após ser respondida. (Pelas perguntas, não ficou claro para mim se eles sabiam que os negros não habitavam a Bahia antes da chegada de Cabral.)
O que é um afrochato? É um mestiço de evidente origem africana cujo único assunto negritude, raízes, candomblé etc. Praticamente diz: “Oi, sou negro. Já falei que sou negro? Quero cumprimentos pela minha produção de melanina.” Ele acha que tem uma estrela na testa por ser escuro e ter apreço pelos orixás — até quando a maioria da população é escura e tem apreço pelos orixás. Quase nunca é preto retinto; mas, do jeito que fala, parece que não tem uma gota de sangue português ou índio. O afrochato é o irmão politicamente correto do nazipardo.
Um filme afrochato e neocarlista
No mesmo local da palestra, o Cine-Theatro Cachoeirano, foi lançado o filme Passos Retumbantes, de Allan Maia. O filme saiu pela Paulo Gustavo. Esses filmes de edital dão vantagens a quem se declarar negro e a quem se declarar membro da sopa de letras (LGBTPQPIAETC ou algo assim). Olhando o Instagram do diretor, e vendo a qualidade do filme, eu duvido de que ele não tenha se beneficiado disso. No mais, o diretor trabalha para a Rede Bahia, a rede de TVs do filho de ACM que retransmite a Globo na Bahia.
O carlismo e a Rede Bahia são bem ufanistas com relação à Bahia — um ufanismo que chega ao narcisismo — e são muito voltados ao turismo. Pinta-se uma Bahia para turista ver. Isto não é uma coisa má em si: muito pelo contrário, caso se trabalhe com turismo. Só não me vá posar de cientista social ou intelectual quando faz isso…
Pois bem: Passos retumbantes é uma como uma reportagem da Rede Bahia, porém voltado para o nicho afrochato da classe média que querem redescobrir suas raízes africanas na Bahia, mais precisamente em Cachoeira. Não à toa, o diretor propõe o conceito de “afroturismo”.
Que seriam tais raízes? Por que não ir para a Nigéria? As raízes são a espiritualidade negra, isto é, candomblé. De fato, há muitos terreiros tradicionais em Cachoeira, e está mais ao alcance do bolso do que a Nigéria. Então o enredo é que uma moça de Salvador quer se reconectar com suas raízes africanas, aí o amigo dela não pode vir para Cachoeira e pede para uma artista local guiá-la. Pronto, é o afroturismo. Por aí se entende que se você for um francês macumbeiro cheio de euro, ou apenas um interessado em samba, esse turismo não é pra você.
De resto, o enredo é todo mal feito. Diz que a história da religiosidade de Cachoeira começa na Irmandade da Boa Morte, que é do século XIX e mistura catolicismo com candomblé. Isso já é uma barbaridade por si só, pois Cachoeira foi povoada por católicos no século XVI e os negros trouxeram os orixás bem depois. Não obstante, eles entrevistam um pai de santo que diz que seu terreiro foi fundado no século XVIII, ou seja, antes do “início” da espiritualidade cachoeirana (eu achei suspeito; de fato, na matéria sobre o tombamento do terreito, diz que é do início do século XX). Mesmo que a religiosidade cachoeirana fosse só candomblé, o documentário já estaria contraditório. E o pai de santo fala um bocado da energia da cor preta para em seguida dizer que o candomblé é puramente espiritual, coisa que não faz sentido nenhum.
De resto, o documentário gastou um tempo desproporcional com um agitador cultural que teve várias bandas, nenhuma de relevância nacional. Notei o português muito ruim. Ele e a artista que guiou a personagem fizeram um show na antes da exibição do filme, tocando repertório de Mateus Aleluia. Discursou também em favor da UFRB, dizendo que os críticos têm uma concepção branca da universidade. Aí pensei de vez que ninguém precisa sequer saber falar um português letrado para repetir os tropos pseudointeligentes.
Mas a fotografia presta (a fotografia da Rede Bahia em geral é boa). E os historiadores do futuro poderão aproveitar os depoimentos de personagens pertinentes ouvidas. Gostei de ver a baiana Sueli lá, a que toca chorinho e bossa nova no saxofone enquanto frita seus deliciosos acarajés embaixo da filarmônica Minerva. Por outro lado, as filarmônicas passaram em branco. Devem ser consideradas brancas.
O lançamento do livro
O lançamento foi na Câmara municipal, um prédio colonial criado para ser Casa de Câmara e Cadeia (assim como a Câmara de Salvador na Pça da Sé). Mais em específico, o lançamento foi na sala onde ocorrem as sessões. Lá há um grande retrato a óleo de D. Pedro II, e outro maior ainda com a morte do Tambor Soledade defronte da Câmara, no início da guerra pela Independência (Cachoeira é dita Heroica por causa do papel na Independência do Brasil, ainda antes do 7 de Setembro). Há também retratos de Anna Nery (da Guerra do Paraguai); e, na sala ao lado, um do Barão de Belém — Belém era uma vila próxima que hoje é distrito do município da Cachoeira.
Veio gente da Fundação Pedro Calmon, do Governo do Estado, que apoiou o livro. A orientadora estava lá de novo e houve uma conversa que foi meio palestra. O auditório ficou sabendo que o trabalho foi feito por conta própria sem ser parte do mestrado nem do doutorado. Isto é uma boa surpresa, ao menos para mim, que não aguentava mais ver acadêmico chorando as pitangas por ter que escrever — escrever! E é uma boa notícia também ver que o Estado da Bahia, mesmo sob o petismo e sua malta identitária, segue fomentando boa pesquisa local.
Pela conversa (e também pelo prefácio muito bom da orientadora que eu já li) ficamos sabendo que a pesquisa é voltada para personagens não necessariamente famosas e tem a finalidade de subsidiar outras pesquisas sociais. Por exemplo: entrosamento dos italianos na região; mobilização de protestantes para ter um cemitério; enriquecimento de quituteiras negras; mortalidade por cólera; campanha abolicionista; indivíduos que aparecem em inventário como escravos e morrem deixando escravos na herança; plano urbanístico… A única coisa que achei chata foi a adesão à expressão politicamente correta “escravizado” como substituta de “escravo”. Me diga: um ex-escravizado é alguém que passou a nunca ter sido escravizado? Um abolicionista era uma pessoa menos esclarecida por falar “escravo” em vez de “escravizado”? E o que fazer com toda a literatura anterior à decisão súbita e anônima de que falar “escravo” é errado? Nem Frederico Lourenço, o tradutor woke da Bíblia, um gay ateu que fica fazendo notas feministas para repreender os costumes pré maio de 68, meteu um “Senhor, sou teu escravizado”… Mas bom, já que florescem nesse cenário adverso, valeu a pena usarem o jargão woke. Oxalá os tempos melhorem e as pessoas voltem a escrever “escravo”, em bom português, sem ter medo de nada.
Ao final, na seção das perguntas, uma autoridade perguntou pela questão de gênero.
Um epílogo
No último domingo do mês, eu ouvia um samba e depois uma barulheira danada perto da minha casa. Começou de tarde e entrou pela noite. Saí para dar uma volta e descobri que o agitador cultural estava fazendo aniversário e havia um verdadeiro comitê de mulheres fazendo homenagens. Ao que parece, a do filme era quem coordenava as homenagens. De orelhada, peguei a afirmação de que o candomblé existe há milhões de anos e que o aniversariante era um intelectual cujos méritos (que incluíam a cor negra e o nascimento na Rua do Brega) o levariam a ser homenageado por incontáveis gerações no futuro.
Aí pensei que a afrochatice tem um quê de delírio e alguém precisava reclamar disso. Pois bem: reclamei, mas falei das coisas boas também. E o cenário cultural não está nada mal para uma cidade de apenas 30 mil habitantes.
Bem racista sua crítica, por favor não retorne a Cachoeira. Fique em casa e nos o´poupe de sua presença novamente.
Racista pra caraaaaaaaaaaaaaaaalhoooooo espero que esse texto seja encontrado pela banca avaliadora de qualquer concurso publico que vc for prestar, sua brankkka